Com esta fala, Irma, a lavadora de pratos, encerra o primeiro ato de “A Louca de Chaillot”, obra-prima do francês Jean Giraudoux (1) , traduzida por este que vos escreve, em cartaz no Sesc Santana até 17/12.
IRMA – Eu me chamo Irma. Detesto o que é feio, amo o que é belo. Sou de uma cidadezinha perdida no interior. Odeio os maus, adoro a bondade. Meu pai era ferreiro em uma encruzilhada. Ele dizia que minha cabeça era mais dura que sua bigorna. Muitas vezes sonho que ele martela meu crânio. Saem até faíscas. Mas se eu fosse menos cabeçuda, não teria deixado a casa dos meus pais em troca de uma vida maravilhosa. Fui primeiro pra outra cidadezinha onde acendia as lareiras no colégio feminino. Detesto a noite, adoro a manhã. Depois em outra cidade de nada, eu alinhavava blusas para as freiras em uma oficina. Detesto o diabo, adoro deus. Depois, aqui, onde sou lavadora de pratos e tenho folga na quinta-feira à tarde. Adoro a liberdade, odeio a escravidão. Ser lavadora em Paris, isso não parece muita coisa. Mas a palavra seduz. É bela. Isso parece tudo? Mas quem tem mais relações que uma lavadora, no escritório, no terraço, sem contar que às vezes eu fico também na chapelaria, e eu não gosto muito das mulheres, eu adoro os homens. Eles não sabem disso. Jamais disse a um deles que o amava. Só vou dizer isso para aquele que eu amar de verdade. Muitos não gostam de mim por causa desse silêncio. Eles passam a mão em minha cintura, acreditam que não percebo. Beliscam minha bunda, acreditam que não sinto. Me beijam nos corredores, acreditam que não sei. Eles me convidam, às quintas, me levam para suas casas. Fazem-me beber. Detesto uísque, adoro anis. Me abraçam e se esticam na cama. Tudo o que quiserem. Mas minha boca está fechada. Antes me matar do que permitir que minha boca diga a eles “eu te amo”. Eles compreendem. Não há um que não me cumprimente depois, quando nos encontramos. Os homens detestam a covardia, adoram a dignidade. Se ficarem chateados, pior pra eles. Não deveriam se meter com uma garota séria. E o que pensaria aquele que eu espero se soubesse que eu disse “eu te amo” àqueles que me tiveram em seus braços antes dele? Meu Deus, como estava certa quando teimei em ser lavadora de pratos! Pois ele virá, não está mais longe. Ele se parece com esse rapaz salvo das águas. Quando eu o vi, a palavra encheu minha boca, essa palavra que eu vou repetir para ele até envelhecer, sem parar, quer ele me beije ou me bata, quer cuide de mim ou me mate. Ele escolherá. Adoro a vida. Adoro a morte.
Escrito por Alberto Guzik às 10h29
(1) Jean Giraudoux ( 1882/1944). Dramaturgo, romancista, ensaista e diplomata francês. O principal encenador de suas peças foi Lous Jouvet, diretor francês que ficou no Brasil por algum tempo durante a 2ª Guerra.
Parte de suas obras pode ser lida em http://wikilivres.ca/wiki/Jean_Giraudoux.