Inocência, a dor de viver em estado latente
Peça de Dea Loher questiona sem cessar a razão de ser das pessoas e dos fatos – Mariangela Alves de lima
Mais que dura, é duríssima a vida levada a sério como o fazem as personagens de Dea Loher em Inocência. Na perspectiva da dramaturgia alemã encenada pelo grupo Os Sátyros a dor de viver é um estado latente, à espera das oportunidades concretas de manifestação. Também fazem falta a algumas dessas personagens européias o espaço para viver confortavelmente, a proteção à vida e o respeito garantido pela lei, mas negado no foro íntimo aos imigrantes africanos. Propulsores habituais da arte engajada esses motivos são freqüentes nos palcos de todo o mundo. Entre as artes o punho do teatro é o primeiro a erguer-se e o último a abaixar. Mas não são por essas razões que se inquietam ou sofrem as figuras situadas em um campo dramático fragmentado em diversas ambientações sociais e culturais. Nesta perspectiva os percalços reais impelem para a marcha acelerada a atividade psíquica das personagens. Imigrantes africanos, jovens trabalhadores, casais de idade e ocupação indefinida e a massa embrutecida de automobilistas urbanos formam um conjunto que se movimenta questionando sem cessar, e em diferentes níveis de linguagem, a razão de ser das pessoas e dos acontecimentos.
Teriam deixado de fazer algo bom dois africanos em situação legal irregular e a consciência da omissão é um tormento perene. Para a velha militante de esquerda o saldo, tudo o que restou do projeto utópico, é o autoritarismo. Um casal vitimado pela violência não sabe reagir porque a resignação pacífica inculcada na cultura alemã do pós-guerra como forma de expiação impede-os agora de reivindicar justiça ou mudar a ordem habitual das coisas. Essas e outras figuras da peça estão plantadas em um solo de valores instáveis, impregnadas de desconfiança e à espera de uma ordem laica ou sagrada que dê um sentido ao curso das respectivas existências. Como abertura e fecho dramático a hipótese do suicídio acena no horizonte da peça.
No entanto a atmosfera sinistra, retomando no novo século temas do teatro europeu do pós-guerra, não tem a mesma espessura neste texto contemporâneo. Ainda que uma personagem afirme, com ironia, que ‘a criação de um sentido eu deixo com prazer para os políticos’, há uma tarefa reservada para a arte que não é de todo inglória. Acabaram-se os sistemas, as visões panorâmicas são constantemente ameaçadas pelo subjetivismo e pelo relativismo que pôs a pique a moral do livre arbítrio e, sendo assim, a arte não poderia propor, sob pena de fracassar esteticamente, uma nova ordem. Contudo, resta o campo da sensibilidade artística apostando ‘na contingência, nos acasos, nos caros, nos imponderáveis que se impõem…’. E é esse campo, das coisas aparentemente pequenas, que a peça de Dea Loher procura mimetizar.
Incidentes de significação mínima na hierarquia de valores consagrados são invocados para conferir peso metafórico à representação porque deles derivam sentimentos e pensamentos que convergem para o enigma que atormenta todos e cada um. A qualificação estilística dos incidentes varia do grotesco ao lírico, mas todos são de fundo irracional e de inegável efeito teatral. Há a mulher que esconde polidamente sob a mesa a repulsa e o desespero, o homem que coleciona caixões, outro que cria jóias para ‘embelezar o mundo’ e até a oferenda de sombrinha cheia de flores que o mar devolve. Tramados a esses acontecimentos simbólicos de ressonância poética há falas descritivas de estados anímicos em que as personagens tanto podem falar na primeira pessoa como se referir a si mesmas por meio de um relato impessoal. Dessa forma há, ao mesmo tempo, uma ação interior e uma explicação distanciada, intencionalmente sóbria, da experiência emotiva.
Dirigido por Rodolfo García Vásquez o espetáculo entrelaça com equilíbrio e muita inventividade as metáforas poéticas e a observação do psiquismo, dois termos cuja alternância é a constante da peça. Uma vez que embates dialógicos têm pouca importância – quase todas as figuras são ilhas – é preciso diversificar e tornar atraente cenicamente um desfile de quase monólogos. Em vez de cortes ou caracterizações de fundo realista para distinguir as cenas e personagens, a encenação situa os diversos ambientes e episódios em um mesmo fundo escuro e indistinto. Todas as cenas se definem lentamente por meio de efeitos de luz, mas continuam cercadas por uma zona difusa onde se preparam outros encadeamentos. Não há pieguice nas interpretações e apenas no primeiro diálogo entre os africanos percebemos a tentação da autopiedade. Ainda assim, respeitando a austeridade da peça, o espetáculo parece menos cruel porque se detém sobre o insólito, valoriza a imagem surpreendente e, ao minimizar caracterizações históricas (onde a vinculação com a realidade da Alemanha é nítida), dissolve o tempo e o espaço de tal modo que o suicídio nos parece mais uma tentação filosófica do que um dado estatístico.
(SERVIÇO) Inocência. 120 min. 14 anos. Espaço dos Satyros Um (70 lug.). Praça Roosevelt, 214, 3258-6345. 5.ª a sáb., 21 h; dom., 20h30. R$ 25. Até 17/12
O ESTADO DE S.PAULO, 1 de dezembro de 2006.
Escrito por Alberto Guzik às 15h51
Stanislávski e o ator
O grande Konstantin Alexêiev, que todos conhecemos como Stanislávski (1), o primeiro formulador contemporâneo de um método para nortear a criação do ator, estabeleceu um marco na história do teatro. Tem gente pró e contra, mas seu vulto e sua importância permanecem indiscutíveis. E a visão ética que ele nos proporcionou do trabalho do ator é até hoje um norte. Eis alguns de seus princípios:
“Não há pequenos papéis, mas só pequenos atores.”
“O artista deve amar a arte em si mesma e não a si mesmo na arte.”
“O ator deve ser hoje Hamlet e amanhã um coadjuvante, mas e até como coadjuvante deve ser um artista.”
“O poeta, o ator, o cenógrafo, o costureiro e o contra-regra, todos servem a um só objetivo, posto pelo poeta em sua peça.”
“Atraso, preguiça, histeria, má vontade, ignorância do papel, necessidade de repetir tudo duas vezes são igualmente prejudiciais ao conjunto e devem ser erradicados.”
Eu concordo com Stanislávski em gênero, número e grau. Certas coisas são verdade sempre, e essas regras devem servir ao teatrão mais convencional e à pesquisa mais descabeladamente inovadora.
Fonte: “Stanislávski e o Teatro de Arte de Moscou”, J. Guinsburg, Ed. Perspectiva
Escrito por Alberto Guzik às 16h17
(1) Stanislávski http://pt.wikipedia.org/wiki/Constantin_Stanislavski