Muito trabalho e pouco tempo. Queria estar em condições de blogar muito mais, mas meus dias estão curtos para tudo que tenho de fazer. E há Inocência. Meu Deus, Inocência! Dea Loher é uma dramaturga de gigantesca estatura. Não digo isso porque sou amigo dela nem porque a conheço pessoalmente. Sim, tenho a honra de estar entre os conhecidos da autora laureada com o Premio Brecht de 2005 (1) . Mas, tímida ela e tímido eu, não somos propriamente amigos. A gente se adora, se respeita, mas não se estabeleceu nunca uma intimidade real, aquela que permite a amizade, entre nós.
Então, se digo que ela tem uma gigantesca estatura, é porque eu, crítico, jornalista, ator, diretor, escritor, do alto da minha experiência de mais de cinco décadas de palco, sinto isso profundamente. Há poucos autores no mundo hoje que concentram tanta seiva humana naquilo que escrevem. Discípula de Heiner Muller (2) , de quem também foi amiga, Dea escreve uma dramaturgia contemporânea, fragmentada, de traços nitidamente pós-modernos. Mas ao mesmo tempo inscreve-se na tradição articulada por uma linhagem ilustre, e seus antecessores são Georg Kaiser (3) , e mais especialmente Bertolt Brecht, e Muller, sem dúvida.
Mas ao contrário desses dois monstros sagrados do teatro alemão, as peças de Dea Loher não são exclusivamente voltadas para a reflexão e a provocação ao intelecto do público. A escritora bávara rega suas cenas e personagens com uma seiva humana contagiante. Inocência é a prova cabal disso. Como ocorre com A vida na Praça Roosevelt, várias histórias que se cruzam, e por meio delas a dramaturga examina os conceitos de inocência e culpa. Os Satyros estão mergulhados agora na criação de Inocência, contaminados por essa escrita poderosa, por personagens riquíssimas, como a sra. Habersatt, que invade casas de gente que não conhece para pedir perdão por crimes que ela não cometeu, mas que afetaram essas pessoas, ou como a sra. Zucker, que inferniza a vida da filha, Rosa, que trabalha com entregas em domicílio, e do genro, Franz, que depois de muito tempo desempregado arrumou trabalho em uma funerária. E há também Fadoul e Elísio, imigrantes ilegais, que se envolvem com Absoluta, stripteaser cega que trabalha no Planeta Azul. E temos também Ella, uma filósofa perturbada, que tenta dar um sentido ao mundo, e Helmut, seu marido, joalheiro que jamais diz palavra.
O exercício do teatro é um aprendizado cotidiano de vida. O processo de criação de Inocência já apresenta alguns caminhos muitíssimo promissores. O texto difícil, sombrio, dotado de escassas parcelas de esperança, nos afeta e mexe conosco. Mas não no sentido de nos dar medo de enfrentá-lo. Deixa-nos é com mais vontade ainda de encarar o problema. E desta vez estou em um ângulo privilegiado como observador. Como vou interpretar Helmut, o joalheiro calado, não preciso passar horas e horas trabalhando para decorar o texto. O trabalho é em outro plano, físico, e vai surgir mais durante o processo do que na solidão de minha casa. Não será resultado de um embate pessoal meu com o texto mas de minha inserção no cadinho da criação, que está sendo conduzida por Rodolfo García Vázquez com a acuidade que lhe é costumeira e com uma grande integração do elenco, basicamente o mesmo que está junto há quase um ano no palco, fazendo A Vida na Praça. Estou apaixonado por Inocência. E o fato de não ter que me preocupar com o texto a ser decorado me permite prestar muito mais atenção no processo de meus colegas, na maneira pela qual eles estão encaminhando suas criações. Bem, por agora é isso. Sentia que precisava falar um pouco melhor dessa fascinante aventura em que estamos mergulhados, e já o fiz.
Para terminar, não posso deixar de observar como é engrandecedor trabalhar com esse elenco, integrado pelo sempre instigante e genial Ivam Cabral, e por uma turma afiadíssima: Ângela Barros (4) , Soraya Saide (5), Fabiano Machado (6), Cléo de Paris (7) , Laerte Kessimos, Tatiana Pacor (8), Nora Toledo (9), Daniel Tavares (10), aos quais se unem ainda a poderosa Silvanah Santos (11) e o jovem e muito talentoso Rui Xavier (12). Que Dionisos nos abençoe.
Escrito por Alberto Guzik às 20h02
(1) Prêmio Brecht. Bertolt-Brecht-Literaturpreis. Prêmio literário dos mais prestigiosos da Alemanha. Entregue a cada 3 anos por um artista que se destaca pelo conjunto de sua obra. Além do prestígio, há uma dotação de 15 mil euros.
(2) Heiner Muller ( 1929/1995). Dramaturgo e escritor alemão. Discipulo e seguidor de Bertold Brecht. Sua obra é uma constante reflexão sobre a História e a Política, dialogando e desconstruindo a tradição literária numa construção que é épica, mas também é pós-moderna.
(3) Georg Kaiser ( 1878/1945) Escritor e dramaturgo alemão. Um dos expoentes do chamado expressionismo alemão, teve de fugir da Alemanha em 1933. Foi para Argentina e depois para Itália, onde morreu.
(4) Angela Barros – Teatropédia
(5) Soraya Saide
(6) Fabiano Machado
(7) Cléo de Paris – Teatropédia
(8) Tatiana Pacor
(9) Nora Toledo – Teatropédia
(10) Daniel Tavares – Teatropédia
(11) Silvanah Santos – Teatropédia
(12) Rui Xavier – Teatropédia