Estamos, nos Satyros, mergulhando mais uma vez no universo de Dea Loher. Começamos a ensaiar Inocência, peça que Dea escreveu em 2004, antes de sua Vida na Praça Roosevelt, portanto, e que foi até hoje seu maior sucesso na Alemanha. Dea transmite a dor de viver com uma intensidade que poucos artistas alcançam. É um assombro sua sensibilidade. Sempre fico espantado com a profundidade de seus textos, cujas camadas mais fundas só se revelam depois de muitas e muitas e muitas leituras.
Mais uma vez temos uma série de histórias que correm paralelas. Há dois imigrantes ilegais e uma stripteaser cega, uma filósofa revoltada e loquaz e meu marido, um ourives silencioso, uma diabética, sua filha e seu genro, preparador de cadáveres, uma senhora que visita famílias que perderam entes queridos para se desculpar pelas ações de seu filho, um assassino serial. E mais uma porção de personagens que vivem situações limite.
Não por acaso o suicídio e a morte são questões recorrentes no texto. Como dói mergulhar na dor humana, é o que penso, no limiar deste novo salto. Mas haverá outra função para o artista hoje? Não lhe resta apenas expressar, do modo mais candente, aquilo que vê e vive? Haverá lugar para cantar beleza e paz e hedonismo nestes tempos que correm? Isso a tevê oferece de sobra. E Hollywood também. Nós, que queremos dizer alguma coisa, não podemos cair nessa arapuca. Encaremos a dor. Encaremos a alemã Dea Loher, a dramaturga capaz de trasnformar a dor em poesia e beleza. Que triste beleza.
Escrito por Alberto Guzik às 11h57
Os pequenos mendigos da praça
Eles são inúmeros e estão sempre ali, nas imediações dos teatros e dos bares da praça Roosevelt. Os meninos miseráveis que vestem farrapos e pedem esmolas. E todo mundo finge que não está aocntecendo nada. Poucos, como o corajoso e generoso Ivam Cabral, têm a coragem de falar com eles. De se aproximar. Eles causam um constrangimento visível. Os teatros e os bares atraem um público bacana, antenado com o experimental, com buscas de novas linguagens. Foi esse público que mudou a cara da praça, atraído pela movimentação incessante dos dois Satyros, do La Barca, dos outros points da praça, que em breve vai receber a nova sede dos Parlapatões, também. É esse público que atrai os pequenos miseráveis, que dizem “Tio, me dá uma moeda”, esticando suas mãos sujas. A gente se retrai. “Hoje eu não tenho”. Sempre “Hoje eu não tenho”. Por dentro, revolta. Raiva do país, dos governos, das elites, de uma das maiores concentrações de renda do mundo. O menino que pede esmolas esta semana (eles parecem se revezar) usa sandálias havaianas apesar das noites frias, tem os dedos dos pés fininhos e brancos, e olhos assustadoramente castanhos. Circula por ali com desenvoltura, sem nenhum constrangimento. Como se soubesse que é direito seu também, pequeno mendigo que causa embaraço no público indie, estar ali. A praça é igualmente dele. E venho pra casa pensando na luz assustadora daqueles olhos castanhos.
Escrito por Alberto Guzik às 12h31